O crocodilo - Fiódor Dostoiévski
Resenha:
O Crocodilo é um conto inacabado escrito por Fiódor Dostoiévski na cidade de São Petesburgo em 1864. O conto possui IV capítulos que em uma primeira leitura incomodam ao leitor atual por abordar a entrada do capital estrangeiro na Rússia da segunda metade do século XIX, sua modernização e sua tentativa de aproximação cultural em relação à Europa, de uma maneira surreal, porém que inclui discussões realistas com âmbito crítico.
A trama se desenvolve em torno de três personagens principais, Ielena Ivânovna esposa de Ivan Matviéitch e seu amigo de família - também narrador do conto - Siémion Siemiônitch. Ivan Matviéitch é uma espécie de funcionário público da Rússia czarista que tira licença para passar três meses viajando através da Europa, porém antes de viajar sua esposa pede para ver o crocodilo que estava sendo exibido na Passagem de São Petesburgo por um alemão.
Ivan consentiu o desejo da mulher e foi com ela e seu amigo o narrador para a Passagem, chegando lá e depois de pagar um quarto de rublo ao dono do estabelecimento, se depararam com o crocodilo em uma espécie de banheira com um pouco de água, ele não se movia. Após o pedido de Ielena o dono alemão o cutucou com um pauzinho e ele se moveu um pouco, soltando um resfolegar. Ielena achou o animal nojento e foi com Siémion observar os outros animais que estavam sendo exibidos no estabelecimento enquanto Ivan continuou junto ao crocodilo.
Pelo que nos narra o narrador Ivan estava cutucando o animal para que ele soltasse novamente o resfolegar quando o crocodilo o abocanhou e o engoliu. Todos ficaram imóveis, não sabiam como agir em uma situação daquelas, Ielena começou a gritar para que tirassem seu homem da barriga daquele crocodilo enquanto o dono do animal gritava por seu crocodilo. Nesta parte do conto começamos a perceber que Siémion não era muito chegado ao seu companheiro Ivan, chegando a ter pensamentos egoístas em relação à situação como este:
“(...)É verdade – pensava eu no momento fatal – se tudo isto tivesse acontecido comigo e não com Ivan Matviéitch, como seria desagradável!”[1]
O que havia dito acima que incomoda o leitor na obra de Dostoiévski é o fato de o alemão, sua mãe e todos os demais personagens que aparecem no decorrer do conto, menos Siémion, não pensam no ser humano que foi engolido por um crocodilo, e sim pensam em um crocodilo, que ao ser exibido em um país que não é o seu de origem, gera capital para seu dono que é um estrangeiro, e que pode morrer por ter engolido um ser humano, bloqueando o fluxo de capital e o futuro progresso russo, o que denominam princípio econômico. Como Dostoiévski fala repetidamente desse princípio econômico acredito que queira criticar essa visão não humanista da economia de capital que chega em seu país. Pois como afirma Boris Schnaiderman no prefácio da publicação lida, Dostoiévski demonstra uma repulsa a qualquer mudança do estado social vigente. E como este capital viria de fora, ou seja, através de estrangeiros o autor também o repulsa, pois é defensor das raízes e das produções nacionais e populares da Rússia.
Voltando ao conto em si, passa que Ivan não morre dentro do crocodilo, ao contrário se sente melhor e mais apto para pensar sobre as soluções dos problemas sociais, de estado, etc. E tem delírios sobre quantas pessoas o visitarão por dia, que fará discursos sobre a natureza das coisas, que será um estadista, entre outras coisas, seu amigo Siémion tenta manter o companheiro com os “pés no chão”, porém não tem sucesso e o ajuda como pode. O alemão se recusa a abrir a barriga do crocodilo porque este é de sua propriedade e ninguém havia pedido para que o russo entrasse em sua barriga, ainda mais que agora muito mais gente iria visitar seu estabelecimento e seus lucros iriam triplicar.
Acontece que aquilo que Ivan acreditava que seria grandioso se reverteu, nos jornais da cidade as notícias chegavam completamente desencontradas e uma delas chegou a chamá-lo de um bêbado que pretendia impedir o progresso do país, ademais de judiar do crocodilo que não teve outra saída a não ser “engoli-lo”.
Quando Siémion vai visitar outro companheiro para obter conselhos sobre como proceder este companheiro age como se o ocorrido lhe fosse merecido, pois só o que Ivan pensava era sobre o progresso, chegava a ser uma pessoa arrogante. Dostoiévski podemos dizer que nessa passagem determina o futuro dos progressistas de sua época.
“- Estou de acordo. Mas Ivan Matviéitch, no decorrer de toda a sua vida funcional, tendeu justamente para um resultado destes. Era vivo, arrogante até. Só tratava de progresso e de umas certas idéias, e eis aonde conduz o progresso!”[2]
Sobre Ielena a impressão que podemos captar da narração de Siémion é que ela é uma pessoa muito adorável, bonita, um pouco fútil, e que possui um caso enquanto seu marido está no interior do crocodilo, ela chega a se questionar sobre o divórcio agora que seu marido não mais receberá seu ordinário.
O conto se interrompe quando Siémion está indo em direção da Passagem para ler os artigos dos jornais que falam sobre o ocorrido com seu companheiro Ivan, deixando o leitor com a curiosidade de saber qual teria sido a reação de Ivan quando visse que seus planos não saíram como planejado.
Existem algumas passagens do conto que acredito que sejam importantes para serem comentadas devido a seu caráter de capitalismo selvagem, desumano e egoísta de ambas as partes, tanto da parte do engolido quanto da parte de seus expectadores.
“(...) Nós mesmos nos afanamos para atrais os capitais estrangeiros à nossa pátria, mas veja bem: mal foi atraído para o nosso meio, o capital do homem do crocodilo duplicou-se por intermédio de Ivan Maviéitch, e nós, em lugar de proteger o proprietário estrangeiro, queremos abrir a barriga do próprio capital de base. Ora, há coerência nisto? A meu ver, Ivan Maviéitch, como um verdadeiro filho de sua pátria, deve ainda alegrar-se e orgulhar-se com o fato de ter duplicado, ou talvez até triplicado, com a sua pessoa, o valor de um crocodilo estrangeiro. Isto é necessário para atrair os capitais(...)”[3]
Comentário feito com Timofiéi Siemiônitch, a quem Siémion foi pedir conselhos sobre como proceder com o ocorrido.
“(...)Serei assunto obrigatório tanto aqui como lá. Há muito ansiava por uma oportunidade em que todos falassem de mim, mas, tolhido de minha pouco importância e pelo posto subalterno, não o conseguia. Agora todavia, tudo isso foi alcançado pela simples tragada de um crocodilo. Cada palavra minha será ouvida, cada uma das minhas afirmações será pensada, transmitida, impressa. E eu hei de mostrar quem sou!(...)”[4]
Fala de Ivan Maviéitch, confirmando o que haviam dito sobre ele, um homem egoísta e arrogante.
Acredito que podemos analisar este conto de Dostoiévski como um conto crítico e cético em relação a esta nova maneira de formação de capital na Rússia ainda czarista. E também a esta atitude desumana frente a acontecimentos inesperados que é gerada pelo chamado capitalismo selvagem. Ainda podemos dizer que é um conto moralista por indicar o comportamento desregrado de Ielena Ivânovna. Não podemos nos esquecer que Dostoiévski não escapa de seu meio social e de sua época, e que estava respondendo a questões que lhe estavam postas, e se formos nos reter a maneira como abordou essa temática no conto O crocodilo, ele a abordou magistralmente, apesar de não o ter terminado.
[1] DOSTOIÉVSKI, Fiódor – O crocodilo e Notas de inverno sobre impressões de verão – tradução de Boris Schaiderman – São Paulo: Ed. 34, 2000, p.18.
[2] Idem, p. 28
[3] Ibidem, p. 33
[4] Idem, p. 41
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
Patrimonio e Folclore na cidade de São Paulo -parte II
Patrimonio e Folclore na cidade de São Paulo
Parte II
No presente trabalho partiremos da seguinte definição do que é folclore:
“(...) chegamos a encarar o folclore como compreendendo ‘todos os elementos culturais que constituem soluções usual e costumeiramente admitidas e esperadas dos membros de uma sociedade, transmitidas de geração a geração por meios informais’ e a supor que ‘do ponto de vista da sistematização dos dados folclóricos essa conceituação tem a vantagem de englobar elementos da cultura material, ergológica, como elementos da natureza não material’ (...)”[1]
Retomando o conceito de Patrimônio Imaterial definido pela Unesco, podemos afirmar que já que este tipo de patrimônio é transmitido de geração em geração e que este é recriado constantemente pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, o folclore também é uma representação deste Patrimônio Imaterial.
Como já havia sido discutido na primeira parte do trabalho preservar o patrimônio é de certa forma sacralizar o objeto ou a forma de expressão, retirando destas manifestações sua historicidade. É justamente este pensamento cristalizador que os denominados folcloristas possuem, de acordo com o pensamento do autor Florestan Fernandes em seu livro “O folclore em questão”.[2]
Para os folcloristas as manifestações populares/folclore devem ser preservadas, pois um dia estas irão desaparecer. O que não percebem é que as manifestações populares estão em constante movimento assim como o ser humano, sua consciência e concepção de mundo. Segundo Florestan Fernandes o folclore possui três funções, a de socializar, a de controle social, e a de preservar os valores sociais. Se estas manifestações mudam de caráter não faz mais sentido preservar seu caráter anterior, temos que nos lembrar que o folclore é uma forma de manifestação móvel que parte do saber popular – Folk = povo, lore = saber – portanto é uma manifestação que sempre será atual.
O que os folcloristas fazem é apropriar-se esteticamente do folclore para a classe erudita, mesmo fenômeno que ocorreu com o pensamento sobre Patrimônio Cultural, como já foi discutido acima. Eles apanham somente os aspectos estáveis do folclore, perdendo todo seu caráter contemporâneo que em pouco tempo tampouco será mais contemporâneo. Em outras palavras os folcloristas estudam basicamente as sobrevivências do modo sociabilizador. Entendem preconceituosamente os ‘meios populares’ como ‘grupos atrasados’. O que sabemos que não é uma realidade, pois os elementos folclóricos estão assentados em todas as classes sociais, seja pelas denominadas trocinhas infantis, seja pelos provérbios populares ou então pelos contos e cantigas de ninar. O folclore desta forma que é entendida se torna inteligível para aqueles que o criam e o transformam, ele perde sua significação e função.
Após esta breve problematização de como o folclore é entendido pelos folcloristas, passo agora a caracterizar o folclore paulista da maneira como este foi estudado pelo autor Florestan Fernandes na década de 1940.
Retomando as três funções que Florestan Fernandes acredita que tenha o folclore paulistano, a primeira delas é influência sociabilizadora. Para isto ele estuda a formação das “trocinhas” infantis formadas no bairro do Bom Retiro em São Paulo. As trocinhas são grupos que as crianças de uma mesma rua formam, para brincar/jogar. Elas são formadas por crianças mais ou menos da mesma idade, que possuem uma mesma concepção de mundo, e categoria social. Nestas trocinhas a criança não aprende somente a brincar e a jogar, ela também aprende que existem regras que precisam ser seguidas para que ela possa brincar, ela começa a distinguir várias reações do grupo em relação às suas ações e começa a se moldar ao grupo. Diz Florestan Fernandes que as trocinhas são uma sociedade em miniatura.[3] Nelas se aprende o valor da competição no caso das disputas em jogos de futebol entre as trocinhas, de companheirismo, de lealdade e amizade também. Quando a criança está com seus colegas suas relações passam a ser simétricas, e não assimétricas como quando ocorre quando estão em contato com adultos.
A segunda função é a do folclore como forma de controle social, aqui se encaixam os ditos e os provérbios populares. Estes podem ser usados em duas situações: quando estão recorrendo à experiência de seus antepassados, se identificam com a chamada “sabedoria popular”; ou então quando acreditam que dentro daquele provérbio está tudo dito, é a verdade expressa em poucas palavras. Quando as pessoas recorrem à experiência de seus antepassados recorrem também à força da moral, é a evidencia da prudência: a força da tradição.
Florestan Fernandes acredita que as famílias que recorrem mais a esta primeira situação de utilização dos provérbios são as de origem luso-brasileira, imigrante, e originárias do interior do Estado de São Paulo. Já as que recorrem à segunda situação são pessoas do segmento urbano, porém que também preservam traços da cultura tradicional.
A terceira e última função do folclore seria a de reintegração da herança social. Devido à rápida mudança e à brusca ruptura que ocorreu na cidade de São Paulo no século XX, o folclore acaba contribuindo para manter uma espécie de “oásis semi-rural” no interior da cidade.[4] Sendo importante para a integração social de novas personalidades que acabavam de se instalar na cidade, e também para perpetuar certas tradições.
Acredito que talvez uma solução para o problema dos folcloristas, que acreditam que é importante somente uma coleta de dados folclóricos, seja a datação destes para facilitar a análise deste banco de dados por cientistas sociais, antropólogos e até mesmo historiadores. O folclore revela muitas facetas da sociedade a qual ele está inserido, e um estudo comparativo entre o mesmo folguedo em diversas épocas pode também nos apontar em quais pontos a sociedade manteve sua tradição, e em quais pontos mudou socialmente.
Não penso que o folclore deva ser preservado e cristalizado pelo perigo de um dia ele acabar, ele não irá acabar somente mudará suas características como tem feito até os dias de hoje. Mas acredito que seja importante inventariar suas manifestações para futuros estudos comparativos.
BIBLIOGRAFIA:
Ø LEMOS, Carlos A C. – O que é patrimônio histórico – São Paulo: Brasiliense, 2004.
Ø CHOAY, Françoise – A alegoria do patrimônio – São Paulo, Editora UNESP, 2001.
Ø NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos – Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário – São Paulo, Hucitec, 2005.
Ø FERNANDES, Florestan – Folclore e mudança social na cidade de São Paulo – São Paulo: Martins Fontes – 2004.
Ø FERNANDES, Florestan – “O folclore em questão” – São Paulo – Martins Fontes – 2003.
[1] FERNANDES, Florestan – “O folclore em questão” – São Paulo – Martins Fontes – 2003, p. 14.
[2] Idem – discussão que permeia toda a obra.
[3] FERNANDES, Florestan – Folclore e mudança social na cidade de São Paulo – São Paulo: Martins Fontes – 2004 p. 19.
[4] Idem, p. 27
Parte II
No presente trabalho partiremos da seguinte definição do que é folclore:
“(...) chegamos a encarar o folclore como compreendendo ‘todos os elementos culturais que constituem soluções usual e costumeiramente admitidas e esperadas dos membros de uma sociedade, transmitidas de geração a geração por meios informais’ e a supor que ‘do ponto de vista da sistematização dos dados folclóricos essa conceituação tem a vantagem de englobar elementos da cultura material, ergológica, como elementos da natureza não material’ (...)”[1]
Retomando o conceito de Patrimônio Imaterial definido pela Unesco, podemos afirmar que já que este tipo de patrimônio é transmitido de geração em geração e que este é recriado constantemente pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, o folclore também é uma representação deste Patrimônio Imaterial.
Como já havia sido discutido na primeira parte do trabalho preservar o patrimônio é de certa forma sacralizar o objeto ou a forma de expressão, retirando destas manifestações sua historicidade. É justamente este pensamento cristalizador que os denominados folcloristas possuem, de acordo com o pensamento do autor Florestan Fernandes em seu livro “O folclore em questão”.[2]
Para os folcloristas as manifestações populares/folclore devem ser preservadas, pois um dia estas irão desaparecer. O que não percebem é que as manifestações populares estão em constante movimento assim como o ser humano, sua consciência e concepção de mundo. Segundo Florestan Fernandes o folclore possui três funções, a de socializar, a de controle social, e a de preservar os valores sociais. Se estas manifestações mudam de caráter não faz mais sentido preservar seu caráter anterior, temos que nos lembrar que o folclore é uma forma de manifestação móvel que parte do saber popular – Folk = povo, lore = saber – portanto é uma manifestação que sempre será atual.
O que os folcloristas fazem é apropriar-se esteticamente do folclore para a classe erudita, mesmo fenômeno que ocorreu com o pensamento sobre Patrimônio Cultural, como já foi discutido acima. Eles apanham somente os aspectos estáveis do folclore, perdendo todo seu caráter contemporâneo que em pouco tempo tampouco será mais contemporâneo. Em outras palavras os folcloristas estudam basicamente as sobrevivências do modo sociabilizador. Entendem preconceituosamente os ‘meios populares’ como ‘grupos atrasados’. O que sabemos que não é uma realidade, pois os elementos folclóricos estão assentados em todas as classes sociais, seja pelas denominadas trocinhas infantis, seja pelos provérbios populares ou então pelos contos e cantigas de ninar. O folclore desta forma que é entendida se torna inteligível para aqueles que o criam e o transformam, ele perde sua significação e função.
Após esta breve problematização de como o folclore é entendido pelos folcloristas, passo agora a caracterizar o folclore paulista da maneira como este foi estudado pelo autor Florestan Fernandes na década de 1940.
Retomando as três funções que Florestan Fernandes acredita que tenha o folclore paulistano, a primeira delas é influência sociabilizadora. Para isto ele estuda a formação das “trocinhas” infantis formadas no bairro do Bom Retiro em São Paulo. As trocinhas são grupos que as crianças de uma mesma rua formam, para brincar/jogar. Elas são formadas por crianças mais ou menos da mesma idade, que possuem uma mesma concepção de mundo, e categoria social. Nestas trocinhas a criança não aprende somente a brincar e a jogar, ela também aprende que existem regras que precisam ser seguidas para que ela possa brincar, ela começa a distinguir várias reações do grupo em relação às suas ações e começa a se moldar ao grupo. Diz Florestan Fernandes que as trocinhas são uma sociedade em miniatura.[3] Nelas se aprende o valor da competição no caso das disputas em jogos de futebol entre as trocinhas, de companheirismo, de lealdade e amizade também. Quando a criança está com seus colegas suas relações passam a ser simétricas, e não assimétricas como quando ocorre quando estão em contato com adultos.
A segunda função é a do folclore como forma de controle social, aqui se encaixam os ditos e os provérbios populares. Estes podem ser usados em duas situações: quando estão recorrendo à experiência de seus antepassados, se identificam com a chamada “sabedoria popular”; ou então quando acreditam que dentro daquele provérbio está tudo dito, é a verdade expressa em poucas palavras. Quando as pessoas recorrem à experiência de seus antepassados recorrem também à força da moral, é a evidencia da prudência: a força da tradição.
Florestan Fernandes acredita que as famílias que recorrem mais a esta primeira situação de utilização dos provérbios são as de origem luso-brasileira, imigrante, e originárias do interior do Estado de São Paulo. Já as que recorrem à segunda situação são pessoas do segmento urbano, porém que também preservam traços da cultura tradicional.
A terceira e última função do folclore seria a de reintegração da herança social. Devido à rápida mudança e à brusca ruptura que ocorreu na cidade de São Paulo no século XX, o folclore acaba contribuindo para manter uma espécie de “oásis semi-rural” no interior da cidade.[4] Sendo importante para a integração social de novas personalidades que acabavam de se instalar na cidade, e também para perpetuar certas tradições.
Acredito que talvez uma solução para o problema dos folcloristas, que acreditam que é importante somente uma coleta de dados folclóricos, seja a datação destes para facilitar a análise deste banco de dados por cientistas sociais, antropólogos e até mesmo historiadores. O folclore revela muitas facetas da sociedade a qual ele está inserido, e um estudo comparativo entre o mesmo folguedo em diversas épocas pode também nos apontar em quais pontos a sociedade manteve sua tradição, e em quais pontos mudou socialmente.
Não penso que o folclore deva ser preservado e cristalizado pelo perigo de um dia ele acabar, ele não irá acabar somente mudará suas características como tem feito até os dias de hoje. Mas acredito que seja importante inventariar suas manifestações para futuros estudos comparativos.
BIBLIOGRAFIA:
Ø LEMOS, Carlos A C. – O que é patrimônio histórico – São Paulo: Brasiliense, 2004.
Ø CHOAY, Françoise – A alegoria do patrimônio – São Paulo, Editora UNESP, 2001.
Ø NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos – Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário – São Paulo, Hucitec, 2005.
Ø FERNANDES, Florestan – Folclore e mudança social na cidade de São Paulo – São Paulo: Martins Fontes – 2004.
Ø FERNANDES, Florestan – “O folclore em questão” – São Paulo – Martins Fontes – 2003.
[1] FERNANDES, Florestan – “O folclore em questão” – São Paulo – Martins Fontes – 2003, p. 14.
[2] Idem – discussão que permeia toda a obra.
[3] FERNANDES, Florestan – Folclore e mudança social na cidade de São Paulo – São Paulo: Martins Fontes – 2004 p. 19.
[4] Idem, p. 27
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
A toa
"Embora estejam transportando você, se procupem com você e de vez em quando até o embalem tanto que, parece, não há mais o que desejar, apesar de tudo uma angústia o invade, e esta angústia procede justamente do fato de que você mesmo não faz nada, porque cuidam demais de você, e você tem que ficar sentado, esperando que o levem ao destino." Dostoiévski, Notas de inverno sobre impressões de verão.
terça-feira, 7 de outubro de 2008
RESENHA DO CAPÍTULO “A QUESTÃO MULTICULTURAL”
RESENHA DO CAPÍTULO “A QUESTÃO MULTICULTURAL”
IN: DA DIÁSPORA-IDENTIDADES E MEDIAÇÕES CULTURAIS DE STUART HALL
Marina Borges A. de Souza
Stuart Hall nasceu na Jamaica em 1932, trabalhou na Inglaterra, atualmente está aposentado, porém continua publicando sobre temas da contemporaneidade.
O texto a ser analisado apresenta questões e debate sobre o que serio o termo “multicultural” e seus multiculturalismos. O autor afirma que apesar de este termo ser usado no mundo inteiro não significa que seu significado seja claro, porém não usa-lo não está em questão pela falta de conceitos menos abrangentes e mais explicativos.
A discussão parte da apreensão do que significaria o termo “multicultural” e o que significaria o termo “multiculturalismo”. Segundo o autor multicultural é uma sociedade na qual em seu interior convivem comunidades culturais distintas, e os problemas governacionais que, por esta convivência aparecem. Ou seja, o termo multicultural significa que certa sociedade é culturalmente heterogênea, o que vai totalmente de encontro com o denominado Estado-nação “moderno”, que se pretende homogêneo, apresar de sabermos que em países “construídos” como Israel isso nunca poderá ser uma verdade.
Multiculturalismo seria as estratégias utilizadas pelo Estado para solucionar os problemas gerados pela existência de grupos sociais distintos dentro de uma nação. Porém quando utilizamos o plural da palavra estratégia devemos entender que, por o multiculturalismo não ser uma única doutrina e como sua solução ainda não foi encontrada, diversos tipos de ação poder ser feitos, sem que nenhuma chegue a um final satisfatório. Como dito anteriormente uma sociedade multicultural contém dentro de si diversos problemas, portanto possui também diversos multiculturalismos para resolvê-los. O autor cita seis tipos de multiculturalismo:
Conservador – que acredita que a minoria deve assimilar a cultura da maioria;
Liberal – acredita na inclusão da minoria na cultura da maioria, porém tolera práticas de sua cultura dentro do domínio privado;
Pluralista – concede direitos individuais a cada grupo distinto existente, avaliando a cultura de cada um;
Comercial – acredita que se todos conhecerem as diferenças culturais dos grupos minoritários, os problemas seriam resolvidos no âmbito privado e o Estado não precisaria intervir;
Corporativo – busca o meio-termo através da administração das diferenças das minorias;
Crítico – direciona as atenções do Estado ao poder e a hierarquização das opressões e aos movimentos de resistência.
O multiculturalismo por não ser uma doutrina fechada, gera discussões desde os setores mais conservadores aos mais liberais, exaltando ânimos de Estados e de populações. Mas o que foi que causou todas essas migrações pelo mundo? Sabemos que a migração sempre fez parte do ser vivo, e a razão mais simples é a de busca de alimentos. Os impérios são todos em si multiculturais devido às ondas de conquistas, o que nos faz perguntar por que os EUA insistem em manter suas fronteiras fechadas, não são eles o império do século?
Stuart Hall resume muito bem as razões pelas migrações:
“As pessoas têm se mudado por várias razões – desastres naturais, alterações ecológicas e climáticas, guerras, conquistas, exploração do trabalho, colonização, escravidão, semi-escravidão, repressão política, guerra civil e subdesenvolvimento econômico.”[1]
Após a II Guerra Mundial se intensificou a migração pela destruição de cidades inteiras, pelo fim do velho sistema imperial, etc. Com isso, como já dito anteriormente, o surgimento de novos Estado-Nação “construídos”, faz com que estes próprios encontrem problemas de identidade, nesse contexto de construção de nações, também o conceito de Nação foi esvaziado.
No Oriente Médio existe uma desigualdade estrutural e ainda além, foi também dominado por países do 1º mundo que insistem em encaixar seus modelos pré-fabricados em uma realidade completamente diferente da sua. Problemas de dependência e subdesenvolvimento gerados no colonialismo não foram superados após o término do mesmo.
Já a globalização como se constitui atualmente – associada ao surgimento de novos mercados financeiros – também contribui para o fator multicultural. Ela pretende combinar tempo, espaços e histórias em um tempo global, não percebendo que com isso as relações sociais são minimizadas e as tradições deixadas para trás. Para Stuart Hall a globalização é um processo que se pretende homogeneizante, mas não o é.
Apesar de tudo parecer semelhante aos olhos do Estado, ainda existem as diferenças locais, afinal cada região/comunidade/sociedade vivencia a realidade sob suas próprias perspectivas. O que constitui um novo tipo de localismo segundo o autor, que surge dentro do contexto global. Ele emerge no centro da metrópole ocidental, são “as margens no centro”.
Para explicar esse novo surgimento Stuart Hall aborda o caso britânico que, apresar de sua história nacional pressupor que a cultura da Grã-Bretanha fosse homogênea e unificada até as migrações do pós-guerra, isso é questionável tanto pelos escoceses quanto pelos irlandeses que foram “colonizados” pela Inglaterra, eles são chamados de ingleses, mas um tipo “diferente” de inglês.
Desde o século XVI existe uma migração afro-caribenha para a Inglaterra, e uma migração asiática desde o século XVIII, justamente essas antigas relações de colonização é que iriam marcar o rumo desses imigrantes. Eles não eram bem recebidos, não eram bem quistos, viviam em condições precárias de moradia, tinham péssimos empregos e sofriam todo tipo de preconceitos e racismos. Isso com que pequenos grupos étnicos fossem se formando e se estabelecendo em bairros de Londres. As chamadas comunidades étnicas têm forte senso de identidade e mantém certos costumes e práticas dentro do âmbito familiar.
Como se sentem essas pessoas em relação a isso, inglesas ou do país de origem? Os dois, afirma Stuart Hall, estas são comunidades híbridas.
“Cerca de dois terços dos oriundos de comunidades minoritárias, quando perguntados no Quarto Censo Nacional de Minorias Étnicas se eles se consideravam ‘britânicos’, responderam que sim, embora também sentissem, por exemplo, que ser britânico e paquistanês não era algo conflituoso em suas mentes.”[2]
É assim formada uma nova configuração cultural que não é bem definida e não se pretende ser.
A Inglaterra se pretendia homogênea, e com o surgimento dessas comunidades étnicas entrou em uma crise de identidade nacional. Começaram então a criar significados de termos para designarem as suas duas maiores comunidades não brancas: utilizam o termo raça para os afro-caribenhos, e etnia para os asiáticos. Raça se usa relacionado á cor da pele, e etnia se usa relacionada a características culturais, registros explícitos de racismo.
Stuart Hall aponta para uma incoerência do Estadi denominado liberal. Como o Estado liberal é neutro, deveria garantir a liberdade do indivíduo em buscar suas próprias concepções de vida não importa qual forem dentro do domínio privado. Porém a lei e o Estado intervêm cada vez mais no domínio privado, não existem mais claras distinções entre o público e o privado. Por isso na prática alguns Estados como a Inglaterra são obrigados a adotar o chamado “programa reformista da ‘social democracia’” no qual “o Estado reconhece formal e publicamente as necessidades sociais diferenciadas, bem como a crescente diversidade cultural de seus cidadãos, admitindo certos direitos grupais e outros definidos pelo indivíduo.”[3]
As dificuldades encontradas pela Inglaterra no âmbito da identidade social e em relação aos racismos estão longe de serem ultrapassadas. Ao mesmo tempo em que se pensa que todos devem ter acesso aos mesmo processos que o indivíduo britânico, se revive uma era de preconceitos, racismo e xenofobismos, afirmando que Inglaterra está “poluída”. A Inglaterra deve se repensar em relação ao multiculturalismo e também em relação ao neo-liberalismo, será que esta política é a que melhor se encaixa em sua realidade?
[1] HALL, Stuart – A questão multicultural in: Da diáspora-Identidades e mediações culturais, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2008, p. 53.
[2] Idem, p.72
[3] Ibidem, p.77
IN: DA DIÁSPORA-IDENTIDADES E MEDIAÇÕES CULTURAIS DE STUART HALL
Marina Borges A. de Souza
Stuart Hall nasceu na Jamaica em 1932, trabalhou na Inglaterra, atualmente está aposentado, porém continua publicando sobre temas da contemporaneidade.
O texto a ser analisado apresenta questões e debate sobre o que serio o termo “multicultural” e seus multiculturalismos. O autor afirma que apesar de este termo ser usado no mundo inteiro não significa que seu significado seja claro, porém não usa-lo não está em questão pela falta de conceitos menos abrangentes e mais explicativos.
A discussão parte da apreensão do que significaria o termo “multicultural” e o que significaria o termo “multiculturalismo”. Segundo o autor multicultural é uma sociedade na qual em seu interior convivem comunidades culturais distintas, e os problemas governacionais que, por esta convivência aparecem. Ou seja, o termo multicultural significa que certa sociedade é culturalmente heterogênea, o que vai totalmente de encontro com o denominado Estado-nação “moderno”, que se pretende homogêneo, apresar de sabermos que em países “construídos” como Israel isso nunca poderá ser uma verdade.
Multiculturalismo seria as estratégias utilizadas pelo Estado para solucionar os problemas gerados pela existência de grupos sociais distintos dentro de uma nação. Porém quando utilizamos o plural da palavra estratégia devemos entender que, por o multiculturalismo não ser uma única doutrina e como sua solução ainda não foi encontrada, diversos tipos de ação poder ser feitos, sem que nenhuma chegue a um final satisfatório. Como dito anteriormente uma sociedade multicultural contém dentro de si diversos problemas, portanto possui também diversos multiculturalismos para resolvê-los. O autor cita seis tipos de multiculturalismo:
Conservador – que acredita que a minoria deve assimilar a cultura da maioria;
Liberal – acredita na inclusão da minoria na cultura da maioria, porém tolera práticas de sua cultura dentro do domínio privado;
Pluralista – concede direitos individuais a cada grupo distinto existente, avaliando a cultura de cada um;
Comercial – acredita que se todos conhecerem as diferenças culturais dos grupos minoritários, os problemas seriam resolvidos no âmbito privado e o Estado não precisaria intervir;
Corporativo – busca o meio-termo através da administração das diferenças das minorias;
Crítico – direciona as atenções do Estado ao poder e a hierarquização das opressões e aos movimentos de resistência.
O multiculturalismo por não ser uma doutrina fechada, gera discussões desde os setores mais conservadores aos mais liberais, exaltando ânimos de Estados e de populações. Mas o que foi que causou todas essas migrações pelo mundo? Sabemos que a migração sempre fez parte do ser vivo, e a razão mais simples é a de busca de alimentos. Os impérios são todos em si multiculturais devido às ondas de conquistas, o que nos faz perguntar por que os EUA insistem em manter suas fronteiras fechadas, não são eles o império do século?
Stuart Hall resume muito bem as razões pelas migrações:
“As pessoas têm se mudado por várias razões – desastres naturais, alterações ecológicas e climáticas, guerras, conquistas, exploração do trabalho, colonização, escravidão, semi-escravidão, repressão política, guerra civil e subdesenvolvimento econômico.”[1]
Após a II Guerra Mundial se intensificou a migração pela destruição de cidades inteiras, pelo fim do velho sistema imperial, etc. Com isso, como já dito anteriormente, o surgimento de novos Estado-Nação “construídos”, faz com que estes próprios encontrem problemas de identidade, nesse contexto de construção de nações, também o conceito de Nação foi esvaziado.
No Oriente Médio existe uma desigualdade estrutural e ainda além, foi também dominado por países do 1º mundo que insistem em encaixar seus modelos pré-fabricados em uma realidade completamente diferente da sua. Problemas de dependência e subdesenvolvimento gerados no colonialismo não foram superados após o término do mesmo.
Já a globalização como se constitui atualmente – associada ao surgimento de novos mercados financeiros – também contribui para o fator multicultural. Ela pretende combinar tempo, espaços e histórias em um tempo global, não percebendo que com isso as relações sociais são minimizadas e as tradições deixadas para trás. Para Stuart Hall a globalização é um processo que se pretende homogeneizante, mas não o é.
Apesar de tudo parecer semelhante aos olhos do Estado, ainda existem as diferenças locais, afinal cada região/comunidade/sociedade vivencia a realidade sob suas próprias perspectivas. O que constitui um novo tipo de localismo segundo o autor, que surge dentro do contexto global. Ele emerge no centro da metrópole ocidental, são “as margens no centro”.
Para explicar esse novo surgimento Stuart Hall aborda o caso britânico que, apresar de sua história nacional pressupor que a cultura da Grã-Bretanha fosse homogênea e unificada até as migrações do pós-guerra, isso é questionável tanto pelos escoceses quanto pelos irlandeses que foram “colonizados” pela Inglaterra, eles são chamados de ingleses, mas um tipo “diferente” de inglês.
Desde o século XVI existe uma migração afro-caribenha para a Inglaterra, e uma migração asiática desde o século XVIII, justamente essas antigas relações de colonização é que iriam marcar o rumo desses imigrantes. Eles não eram bem recebidos, não eram bem quistos, viviam em condições precárias de moradia, tinham péssimos empregos e sofriam todo tipo de preconceitos e racismos. Isso com que pequenos grupos étnicos fossem se formando e se estabelecendo em bairros de Londres. As chamadas comunidades étnicas têm forte senso de identidade e mantém certos costumes e práticas dentro do âmbito familiar.
Como se sentem essas pessoas em relação a isso, inglesas ou do país de origem? Os dois, afirma Stuart Hall, estas são comunidades híbridas.
“Cerca de dois terços dos oriundos de comunidades minoritárias, quando perguntados no Quarto Censo Nacional de Minorias Étnicas se eles se consideravam ‘britânicos’, responderam que sim, embora também sentissem, por exemplo, que ser britânico e paquistanês não era algo conflituoso em suas mentes.”[2]
É assim formada uma nova configuração cultural que não é bem definida e não se pretende ser.
A Inglaterra se pretendia homogênea, e com o surgimento dessas comunidades étnicas entrou em uma crise de identidade nacional. Começaram então a criar significados de termos para designarem as suas duas maiores comunidades não brancas: utilizam o termo raça para os afro-caribenhos, e etnia para os asiáticos. Raça se usa relacionado á cor da pele, e etnia se usa relacionada a características culturais, registros explícitos de racismo.
Stuart Hall aponta para uma incoerência do Estadi denominado liberal. Como o Estado liberal é neutro, deveria garantir a liberdade do indivíduo em buscar suas próprias concepções de vida não importa qual forem dentro do domínio privado. Porém a lei e o Estado intervêm cada vez mais no domínio privado, não existem mais claras distinções entre o público e o privado. Por isso na prática alguns Estados como a Inglaterra são obrigados a adotar o chamado “programa reformista da ‘social democracia’” no qual “o Estado reconhece formal e publicamente as necessidades sociais diferenciadas, bem como a crescente diversidade cultural de seus cidadãos, admitindo certos direitos grupais e outros definidos pelo indivíduo.”[3]
As dificuldades encontradas pela Inglaterra no âmbito da identidade social e em relação aos racismos estão longe de serem ultrapassadas. Ao mesmo tempo em que se pensa que todos devem ter acesso aos mesmo processos que o indivíduo britânico, se revive uma era de preconceitos, racismo e xenofobismos, afirmando que Inglaterra está “poluída”. A Inglaterra deve se repensar em relação ao multiculturalismo e também em relação ao neo-liberalismo, será que esta política é a que melhor se encaixa em sua realidade?
[1] HALL, Stuart – A questão multicultural in: Da diáspora-Identidades e mediações culturais, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2008, p. 53.
[2] Idem, p.72
[3] Ibidem, p.77
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
PATRIMÔNIO E FOLCLORE NA CIDADE DE SÃO PAULO
PATRIMÔNIO E FOLCLORE NA CIDADE DE SÃO PAULOUMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
Marina Borges A. de Souza
A discussão acerca do tema Patrimônio em São Paulo e no Brasil surgiu em uma época de efervescência intelectual em São Paulo, a década de 1930. Época em que foi criado o Departamento de Cultura do Município de São Paulo, fruto da cidade e sua “gente”: uma elite cultural, política e econômica que atualmente denominamos modernistas. Para eles a cidade deveria ser o pólo irradiador da “civilização” brasileira.
Já é sabido que na década de 20 do século XX a economia cafeeira entrou em declínio e em posterior crise, os Estados de São Paulo e Minas Gerais estavam dominando intelectualmente e economicamente todo o Brasil com a política café-com-leite, e com a queda da economia a política também entrou em crise. A solução pensada por estes intelectuais acerca da crise seria que esta elite deveria conduzir o Brasil moderno através das questões culturais, como por exemplo, a modernização do e pelo sistema de ensino. É deste pensamento que é criada a Universidade de São Paulo em 1934, universidade pela qual os dirigentes do país deveriam ser formados.
O governador do Estado de São Paulo era Armando Sales de Oliveira, o chefe de gabinete do futuro departamento de cultura foi Paulo Duarte e o prefeito da cidade a partir de 1935 foi Fabio Prado, que tinha como lema “Conhecer para governar”, com influência do Partido Democrático. Foram dessas cabeças que surgiu a idéia de criação de um Departamento de cultura, e seu anteprojeto foi escrito por Mário de Andrade e Paulo Duarte que posteriormente foi criticado, adaptado e por fim aprovado por Armando Sales. Como Mário de Andrade fora o idealizador do projeto ele foi escolhido para a direção da Divisão de expansão cultural do Departamento.
Como o departamento queria, portanto, “reconhecer” / construir a cultura brasileira partindo de São Paulo, Mário de Andrade saiu pelo Brasil para registrar essas manifestações culturais (falas, histórias, lendas, danças, comidas, vestimentas, costumes, etc.), aproximando-se muito daquilo que os folcloristas fazem. Com influência francesa Mário de Andrade percebeu a necessidade de demarcar aquilo que fazia parte dessa cultura material: prédios pertencentes a aristocracia da época, esculturas, monumentos históricos, etc. A partir disso iniciou-se a discussão sobe patrimônio histórico e artística brasileiro, e desta resultou a criação do SPHAN, Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico, em 1937. “Defender o nosso patrimônio histórico e artístico é alfabetização”, fala de Paulo Duarte[1].
Este projeto tinha como política a construção do nacionalismo, assim como em todos os outros países o patrimônio é ligado à construção da Nação.[2] Era o início da delimitação dos espaços que cada indivíduo poderia ocupar dentro da cidade. Era a legitimação da memória coletiva imposta pelas classes mais altas para as mais baixas, um detalhe do jogo político. Segundo Jaques Le Goff:
“(...) Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas.”[3]
O Patrimônio deveria ter a capacidade de representar a nação no material a partir de valores atribuídos previamente, devia-se inventariar, identificar, registrar e conservar os exemplares mais representativos da história do país, sabendo que as representações culturais são muito mais amplas do que os limites impostos pelo patrimônio histórico e artístico. É a cristalização dos elementos na construção da identidade nacional, apesar de a grande maioria da população ter continuado sem reconhecer esses símbolos e ainda mais, sem se reconhecer nesses símbolos, mais uma vez sua memória foi expropriada. O Patrimônio é uma construção para toda a população, mas como atingir toda ela? Apesar de que em uma primeira instancia não pretendiam investigar o patrimônio, nem conhecer sua diversidade, somente queriam buscar elementos materiais que correspondessem àquilo que já conheciam, acredito que seja esse o desafio do atual IPHAN, alcançar mais profundamente os “feitores” da cultura, e não somente expropriar desses suas práticas e colocar-las em um museu estático. O que é um objeto isolado de seu contexto senão apenas um fragmento daquilo que significou para a sociedade da qual se originou? O patrimônio histórico se constituiu na contramão do processo de urbanização, ele impede a demolição de certas construções em pró da chamada memória nacional. Carlos A C. Lemos nos dá o exemplo de patrimônio que vem sendo o mais comum no Brasil:
“Ali na casa parada estava milagrosamente guardado um segmento de nosso Patrimônio Cultural ostentando os objetos típicos de uma família de classe média alta, mostrando os quadros preferidos pela burguesia do tempo, os móveis comprados para a inauguração do sobrado neoclássico e os outros herdados, as louças e porcelanas, o piano de causa(...)”[4]
É somente em dias atuais, final do século XX e início do século XXI é que se vem discutindo sobre a patrimonialização de artefatos do povo, tanto em cultural material quanto em imaterial, como por exemplo, o frevo, o futebol, o samba, as canções de ninar, etc. Antes disso o patrimônio era construído por uma elite para uma elite, por este motivo a maioria dos nossos patrimônios são de ordem material e não representam uma forma de cultura que atinja às classes populares, o patrimônio se tornava assim inteligível para àqueles os quais deveria ser destinado.
O atual conceito de patrimônio material segundo o IPHAN é:
“O patrimônio material protegido pelo Iphan, com base em legislações específicas é composto por um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza nos quatro Livros do Tombo: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis como os núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais; e móveis como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos.”[5]
Conceito de patrimônio imaterial é:
“A Unesco define como Patrimônio Cultural Imaterial ‘as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.’ O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.”[6]
Uma palavra que se vincula ao sentido de patrimônio é preservar. Carlos Lemos assim explica:
“Assim, preservar não é só guardar uma coisa, um objeto, uma construção, um miolo histórico de uma grande cidade velha. Preservar também é gravar depoimentos, sons, músicas populares e eruditas. Preservar é manter vivos, mesmo que alterados, usos e costumes populares. È fazer levantamentos de construções, especialmente aquelas solidamente condenadas ao desaparecimento decorrente da especulação imobiliária.”[7]
Esta afirmação é a mais próxima ao conceito de preservação patrimonial atual. Carlos Lemos também acredita que as cidades são vivas, que estão em processo de transformação continuo, e por isso se deve preservar certas construções. O que não percebe creio, é que desta forma também afirma que preservar é sacralizar o objeto a ser preservado. Utilizando o exemplo da cidade, tornando-a histórica, ela perde sua historicidade, perde seu campo de ação e de mudança dentro de seu contexto. Assim como agem os folcloristas, segundo discussão de Florestan Fernandes, porém sobre este assunto tratarei na segunda parte do trabalho. Que em breve será publicada.
[1] NOGUEIRA, Antonio Gilberto R. – Por um inventário dos sentidos: Mario de Andrade e a concepção de Patrimônio e inventário – São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2005, p. 215
[2] CHOAY, Françoise – A alegoria do patrimônio – São Paulo: Editora UNESP, 2001
[3] in: NOGUEIRA, idem p.222
[4] in: LEMOS, Carlos A C. – O que é patrimônio histórico – São Paulo: Brasiliense, 2004, p.18
[5] http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaInicial.do
[6] idem
[7] Idem, p. 29
BIBLIOGRAFIA:
Ø LEMOS, Carlos A C. – O que é patrimônio histórico – São Paulo: Brasiliense, 2004.
Ø CHOAY, Françoise – A alegoria do patrimônio – São Paulo, Editora UNESP, 2001.
Ø NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos – Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário – São Paulo, Hucitec, 2005.
Marina Borges A. de Souza
A discussão acerca do tema Patrimônio em São Paulo e no Brasil surgiu em uma época de efervescência intelectual em São Paulo, a década de 1930. Época em que foi criado o Departamento de Cultura do Município de São Paulo, fruto da cidade e sua “gente”: uma elite cultural, política e econômica que atualmente denominamos modernistas. Para eles a cidade deveria ser o pólo irradiador da “civilização” brasileira.
Já é sabido que na década de 20 do século XX a economia cafeeira entrou em declínio e em posterior crise, os Estados de São Paulo e Minas Gerais estavam dominando intelectualmente e economicamente todo o Brasil com a política café-com-leite, e com a queda da economia a política também entrou em crise. A solução pensada por estes intelectuais acerca da crise seria que esta elite deveria conduzir o Brasil moderno através das questões culturais, como por exemplo, a modernização do e pelo sistema de ensino. É deste pensamento que é criada a Universidade de São Paulo em 1934, universidade pela qual os dirigentes do país deveriam ser formados.
O governador do Estado de São Paulo era Armando Sales de Oliveira, o chefe de gabinete do futuro departamento de cultura foi Paulo Duarte e o prefeito da cidade a partir de 1935 foi Fabio Prado, que tinha como lema “Conhecer para governar”, com influência do Partido Democrático. Foram dessas cabeças que surgiu a idéia de criação de um Departamento de cultura, e seu anteprojeto foi escrito por Mário de Andrade e Paulo Duarte que posteriormente foi criticado, adaptado e por fim aprovado por Armando Sales. Como Mário de Andrade fora o idealizador do projeto ele foi escolhido para a direção da Divisão de expansão cultural do Departamento.
Como o departamento queria, portanto, “reconhecer” / construir a cultura brasileira partindo de São Paulo, Mário de Andrade saiu pelo Brasil para registrar essas manifestações culturais (falas, histórias, lendas, danças, comidas, vestimentas, costumes, etc.), aproximando-se muito daquilo que os folcloristas fazem. Com influência francesa Mário de Andrade percebeu a necessidade de demarcar aquilo que fazia parte dessa cultura material: prédios pertencentes a aristocracia da época, esculturas, monumentos históricos, etc. A partir disso iniciou-se a discussão sobe patrimônio histórico e artística brasileiro, e desta resultou a criação do SPHAN, Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico, em 1937. “Defender o nosso patrimônio histórico e artístico é alfabetização”, fala de Paulo Duarte[1].
Este projeto tinha como política a construção do nacionalismo, assim como em todos os outros países o patrimônio é ligado à construção da Nação.[2] Era o início da delimitação dos espaços que cada indivíduo poderia ocupar dentro da cidade. Era a legitimação da memória coletiva imposta pelas classes mais altas para as mais baixas, um detalhe do jogo político. Segundo Jaques Le Goff:
“(...) Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas.”[3]
O Patrimônio deveria ter a capacidade de representar a nação no material a partir de valores atribuídos previamente, devia-se inventariar, identificar, registrar e conservar os exemplares mais representativos da história do país, sabendo que as representações culturais são muito mais amplas do que os limites impostos pelo patrimônio histórico e artístico. É a cristalização dos elementos na construção da identidade nacional, apesar de a grande maioria da população ter continuado sem reconhecer esses símbolos e ainda mais, sem se reconhecer nesses símbolos, mais uma vez sua memória foi expropriada. O Patrimônio é uma construção para toda a população, mas como atingir toda ela? Apesar de que em uma primeira instancia não pretendiam investigar o patrimônio, nem conhecer sua diversidade, somente queriam buscar elementos materiais que correspondessem àquilo que já conheciam, acredito que seja esse o desafio do atual IPHAN, alcançar mais profundamente os “feitores” da cultura, e não somente expropriar desses suas práticas e colocar-las em um museu estático. O que é um objeto isolado de seu contexto senão apenas um fragmento daquilo que significou para a sociedade da qual se originou? O patrimônio histórico se constituiu na contramão do processo de urbanização, ele impede a demolição de certas construções em pró da chamada memória nacional. Carlos A C. Lemos nos dá o exemplo de patrimônio que vem sendo o mais comum no Brasil:
“Ali na casa parada estava milagrosamente guardado um segmento de nosso Patrimônio Cultural ostentando os objetos típicos de uma família de classe média alta, mostrando os quadros preferidos pela burguesia do tempo, os móveis comprados para a inauguração do sobrado neoclássico e os outros herdados, as louças e porcelanas, o piano de causa(...)”[4]
É somente em dias atuais, final do século XX e início do século XXI é que se vem discutindo sobre a patrimonialização de artefatos do povo, tanto em cultural material quanto em imaterial, como por exemplo, o frevo, o futebol, o samba, as canções de ninar, etc. Antes disso o patrimônio era construído por uma elite para uma elite, por este motivo a maioria dos nossos patrimônios são de ordem material e não representam uma forma de cultura que atinja às classes populares, o patrimônio se tornava assim inteligível para àqueles os quais deveria ser destinado.
O atual conceito de patrimônio material segundo o IPHAN é:
“O patrimônio material protegido pelo Iphan, com base em legislações específicas é composto por um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza nos quatro Livros do Tombo: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis como os núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais; e móveis como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos.”[5]
Conceito de patrimônio imaterial é:
“A Unesco define como Patrimônio Cultural Imaterial ‘as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.’ O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.”[6]
Uma palavra que se vincula ao sentido de patrimônio é preservar. Carlos Lemos assim explica:
“Assim, preservar não é só guardar uma coisa, um objeto, uma construção, um miolo histórico de uma grande cidade velha. Preservar também é gravar depoimentos, sons, músicas populares e eruditas. Preservar é manter vivos, mesmo que alterados, usos e costumes populares. È fazer levantamentos de construções, especialmente aquelas solidamente condenadas ao desaparecimento decorrente da especulação imobiliária.”[7]
Esta afirmação é a mais próxima ao conceito de preservação patrimonial atual. Carlos Lemos também acredita que as cidades são vivas, que estão em processo de transformação continuo, e por isso se deve preservar certas construções. O que não percebe creio, é que desta forma também afirma que preservar é sacralizar o objeto a ser preservado. Utilizando o exemplo da cidade, tornando-a histórica, ela perde sua historicidade, perde seu campo de ação e de mudança dentro de seu contexto. Assim como agem os folcloristas, segundo discussão de Florestan Fernandes, porém sobre este assunto tratarei na segunda parte do trabalho. Que em breve será publicada.
[1] NOGUEIRA, Antonio Gilberto R. – Por um inventário dos sentidos: Mario de Andrade e a concepção de Patrimônio e inventário – São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2005, p. 215
[2] CHOAY, Françoise – A alegoria do patrimônio – São Paulo: Editora UNESP, 2001
[3] in: NOGUEIRA, idem p.222
[4] in: LEMOS, Carlos A C. – O que é patrimônio histórico – São Paulo: Brasiliense, 2004, p.18
[5] http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaInicial.do
[6] idem
[7] Idem, p. 29
BIBLIOGRAFIA:
Ø LEMOS, Carlos A C. – O que é patrimônio histórico – São Paulo: Brasiliense, 2004.
Ø CHOAY, Françoise – A alegoria do patrimônio – São Paulo, Editora UNESP, 2001.
Ø NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos – Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário – São Paulo, Hucitec, 2005.
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