Patrimonio e Folclore na cidade de São Paulo
Parte II
No presente trabalho partiremos da seguinte definição do que é folclore:
“(...) chegamos a encarar o folclore como compreendendo ‘todos os elementos culturais que constituem soluções usual e costumeiramente admitidas e esperadas dos membros de uma sociedade, transmitidas de geração a geração por meios informais’ e a supor que ‘do ponto de vista da sistematização dos dados folclóricos essa conceituação tem a vantagem de englobar elementos da cultura material, ergológica, como elementos da natureza não material’ (...)”[1]
Retomando o conceito de Patrimônio Imaterial definido pela Unesco, podemos afirmar que já que este tipo de patrimônio é transmitido de geração em geração e que este é recriado constantemente pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, o folclore também é uma representação deste Patrimônio Imaterial.
Como já havia sido discutido na primeira parte do trabalho preservar o patrimônio é de certa forma sacralizar o objeto ou a forma de expressão, retirando destas manifestações sua historicidade. É justamente este pensamento cristalizador que os denominados folcloristas possuem, de acordo com o pensamento do autor Florestan Fernandes em seu livro “O folclore em questão”.[2]
Para os folcloristas as manifestações populares/folclore devem ser preservadas, pois um dia estas irão desaparecer. O que não percebem é que as manifestações populares estão em constante movimento assim como o ser humano, sua consciência e concepção de mundo. Segundo Florestan Fernandes o folclore possui três funções, a de socializar, a de controle social, e a de preservar os valores sociais. Se estas manifestações mudam de caráter não faz mais sentido preservar seu caráter anterior, temos que nos lembrar que o folclore é uma forma de manifestação móvel que parte do saber popular – Folk = povo, lore = saber – portanto é uma manifestação que sempre será atual.
O que os folcloristas fazem é apropriar-se esteticamente do folclore para a classe erudita, mesmo fenômeno que ocorreu com o pensamento sobre Patrimônio Cultural, como já foi discutido acima. Eles apanham somente os aspectos estáveis do folclore, perdendo todo seu caráter contemporâneo que em pouco tempo tampouco será mais contemporâneo. Em outras palavras os folcloristas estudam basicamente as sobrevivências do modo sociabilizador. Entendem preconceituosamente os ‘meios populares’ como ‘grupos atrasados’. O que sabemos que não é uma realidade, pois os elementos folclóricos estão assentados em todas as classes sociais, seja pelas denominadas trocinhas infantis, seja pelos provérbios populares ou então pelos contos e cantigas de ninar. O folclore desta forma que é entendida se torna inteligível para aqueles que o criam e o transformam, ele perde sua significação e função.
Após esta breve problematização de como o folclore é entendido pelos folcloristas, passo agora a caracterizar o folclore paulista da maneira como este foi estudado pelo autor Florestan Fernandes na década de 1940.
Retomando as três funções que Florestan Fernandes acredita que tenha o folclore paulistano, a primeira delas é influência sociabilizadora. Para isto ele estuda a formação das “trocinhas” infantis formadas no bairro do Bom Retiro em São Paulo. As trocinhas são grupos que as crianças de uma mesma rua formam, para brincar/jogar. Elas são formadas por crianças mais ou menos da mesma idade, que possuem uma mesma concepção de mundo, e categoria social. Nestas trocinhas a criança não aprende somente a brincar e a jogar, ela também aprende que existem regras que precisam ser seguidas para que ela possa brincar, ela começa a distinguir várias reações do grupo em relação às suas ações e começa a se moldar ao grupo. Diz Florestan Fernandes que as trocinhas são uma sociedade em miniatura.[3] Nelas se aprende o valor da competição no caso das disputas em jogos de futebol entre as trocinhas, de companheirismo, de lealdade e amizade também. Quando a criança está com seus colegas suas relações passam a ser simétricas, e não assimétricas como quando ocorre quando estão em contato com adultos.
A segunda função é a do folclore como forma de controle social, aqui se encaixam os ditos e os provérbios populares. Estes podem ser usados em duas situações: quando estão recorrendo à experiência de seus antepassados, se identificam com a chamada “sabedoria popular”; ou então quando acreditam que dentro daquele provérbio está tudo dito, é a verdade expressa em poucas palavras. Quando as pessoas recorrem à experiência de seus antepassados recorrem também à força da moral, é a evidencia da prudência: a força da tradição.
Florestan Fernandes acredita que as famílias que recorrem mais a esta primeira situação de utilização dos provérbios são as de origem luso-brasileira, imigrante, e originárias do interior do Estado de São Paulo. Já as que recorrem à segunda situação são pessoas do segmento urbano, porém que também preservam traços da cultura tradicional.
A terceira e última função do folclore seria a de reintegração da herança social. Devido à rápida mudança e à brusca ruptura que ocorreu na cidade de São Paulo no século XX, o folclore acaba contribuindo para manter uma espécie de “oásis semi-rural” no interior da cidade.[4] Sendo importante para a integração social de novas personalidades que acabavam de se instalar na cidade, e também para perpetuar certas tradições.
Acredito que talvez uma solução para o problema dos folcloristas, que acreditam que é importante somente uma coleta de dados folclóricos, seja a datação destes para facilitar a análise deste banco de dados por cientistas sociais, antropólogos e até mesmo historiadores. O folclore revela muitas facetas da sociedade a qual ele está inserido, e um estudo comparativo entre o mesmo folguedo em diversas épocas pode também nos apontar em quais pontos a sociedade manteve sua tradição, e em quais pontos mudou socialmente.
Não penso que o folclore deva ser preservado e cristalizado pelo perigo de um dia ele acabar, ele não irá acabar somente mudará suas características como tem feito até os dias de hoje. Mas acredito que seja importante inventariar suas manifestações para futuros estudos comparativos.
BIBLIOGRAFIA:
Ø LEMOS, Carlos A C. – O que é patrimônio histórico – São Paulo: Brasiliense, 2004.
Ø CHOAY, Françoise – A alegoria do patrimônio – São Paulo, Editora UNESP, 2001.
Ø NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos – Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário – São Paulo, Hucitec, 2005.
Ø FERNANDES, Florestan – Folclore e mudança social na cidade de São Paulo – São Paulo: Martins Fontes – 2004.
Ø FERNANDES, Florestan – “O folclore em questão” – São Paulo – Martins Fontes – 2003.
[1] FERNANDES, Florestan – “O folclore em questão” – São Paulo – Martins Fontes – 2003, p. 14.
[2] Idem – discussão que permeia toda a obra.
[3] FERNANDES, Florestan – Folclore e mudança social na cidade de São Paulo – São Paulo: Martins Fontes – 2004 p. 19.
[4] Idem, p. 27
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